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GUILHERME DABLE

Guilherme Bueno

 

Há duas cenas marcantes da história da pintura na metade do século XX: a primeira é a sequência de Jackson Pollock filmada por Hans Namuth; a segunda, o encontro de Duke Ellington com Joan Miró. Tais referencias nos levam as pinturas de Guilherme Dable. Há a ênfase do improviso como decisão em processo a revelar a dinâmica do ateliê com suas manobras e soluções como matéria poética.

O filósofo Hubert Damisch assim se refere a Pollock: “Um quadro de Pollock não é apenas o resultado de um trabalho, produto acabado que escapa ao produtor, mas o registro das etapas sucessivas de gênese de uma obra em que cada gesto vem, por sua vez, modificar ou completar a estrutura”. Transponhamos tal lógica para Dable. Nele sentimos a inflexão, ou melhor, ajuste, entre o improviso e a articulação por meio de três fatores: o valor maleável do desenho, o sistema de “cortes” de algumas pinceladas e a equalização de determinadas qualidades plásticas a um meio.

O desenho nas telas de Dable oscila entre marcação inicial e uma final. A linha num momento serve para cercar uma área a ser pintada; noutro, delimita a superfície resolvida. Ela se esvai do caráter projetivo do desenho e valoriza-se como eixo de articulação de planos mediante a anulação de uma estrutura “imediata” de figura e fundo. É um anti-contorno: não pré-determina o design da pintura, nem produz uma compartimentação a separar em definitivo. 

O sistema de “cortes” da pinceladas é análogo. A impressão inicial é a de uma geometria, porém ocorre o contrário. Afinal, a geometria dá uma estrutura pré-determinada. Em Dable, linhas e planos definem reciprocamente até onde uma parte se assenta, quando separa ou junta áreas, como a pintura se organiza entre contenção e transbordamento da tela. Não é contraditória a coexistência entre alguns desses cortes mais secos e a assimilação dos escorridos de tinta, uma vez que ambos trazem a justaposição entre uma dimensão física (a materialidade propriamente dita) e outra ótica (a organização espacial da tela, com seu jogo entre profundidade e superfície). 

Por fim, a equalização. Trata-se de conseguir transparências e veladuras com tinta acrílica. O acrílico não é dos mais afáveis a isso: exige execução ágil, na contramão da cadência de acumulação e raspagens do óleo. A secagem não dá margem para decisões mais ponderadas (como não raro solicita uma veladura). Ademais, um plano inferior pode deixar uma “cicatriz” naquele mais superficial, dada a corporeidade da tinta. Dable assume tais riscos, conciliando intuição e um timing das tintas. A recompensa do desafio de extrair de uma matéria aquilo que ela parecia não oferecer é, a princípio, a abertura de uma nova gama de potencialidades.  Contudo, num sentido mais extenso, confirma, nestas pequenas frestas e manobras, a pintura enquanto uma linguagem ainda apta a tensionar relações como meio, historicidade e atualidade, naquilo em que demostra que tais situações, além de não se esgotarem, permanecem válidas.

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