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Por uma teoria da /montanha/

Eduardo Veras

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Hubert Damish formulou em 1972 a sua teoria da nuvem. Queria contrapor-se aos historiadores da arte que tentavam apontar um sentido unívoco – certeiro, absoluto – em tudo aquilo que se repetia, feito alegoria ou ícone, em diferentes pinturas ao longo dos tempos. Em vez de elucidar a charada (e devorar a esfinge), o filósofo francês preferia tratar os elementos figurativos que apareciam nos quadros como “sintomas”, sempre diversos e sempre renováveis. Daí seu gosto pelas nuvens. As nuvens, mais do que qualquer outra coisa pintada, se prestam bem a esse tipo de especulação intuitiva: às vezes, sugerem a aliança entre os mundos terreno e divino; às vezes, reproduzem o êxtase; noutros casos, o milagre; com alguma sorte, a própria imaginação. Também podem remeter ao infinito, ao desconhecido e ao invisível. As nuvens calham de emprestar alguma forma àquilo que não tem forma; conseguem representar, portanto, o que nem pode ser representado, o inapreensível.

Talvez fosse o caso de imaginar uma teoria não idêntica a essa, mas algo similar, avizinhada, para a montanha. Ou /montanha/ (Damish coloca sua /nuvem/ entre barras, sinalizando não exatamente uma suspensão volátil, mas antes o interesse em sua condição de signo, e não na de nuvem “de verdade”). A montanha, segundo essa lógica, não precisaria significar apenas aquilo que insiste em ficar lá, para lá, ao longe: a montanha inarredável e sólida; a montanha intransponível e parada.

Para além de seu peso, sua inteireza e sua imobilidade, a montanha há de apresentar outros sintomas a quem se dispuser a contemplá-la. Não por acaso é precisamente uma montanha que define uma das primeiras paisagens reconhecíveis na História da Arte: no retábulo de 1444, em que representa o encontro de São Pedro e Jesus Cristo após a Ressurreição, o suíço Konrad Witz pintou ao fundo o Monte Salève, com o Lago de Genebra à frente, fazendo as vezes do Mar de Tiberíades. A montanha, ali, não apenas oferece um contraponto à transparência das águas do primeiro plano; e não apenas ecoa o caráter hierático, afirmativo, do Cristo coberto pelo manto vermelho. A montanha tem ainda outra função: Gombrich nos convida a imaginar o quão comovente deve ter sido para os fiéis genebrinos – contemporâneos de Witz – a sorte de reconhecer sua própria cidade na cena bíblica da pesca milagrosa.

Haveria, é claro, uma infinidade de outras montanhas a elencar, tão ou mais célebres que aquela. As de Caspar David Friedrich, por exemplo, costumam ser arroladas como emblemas do romantismo alemão, ao mesmo tempo místico e idealista, atormentado e arrebatador. Mas não haveria naquelas montanhas algo da ordem do indecifrável? Ou mesmo do ilegível? Para sorte desse argumento-pergunta, em uma das mais conhecidas paisagens de Friedrich, a montanha ao fundo – enfeixada por uma série de outras montanhas e observada desde o alto de um penhasco em primeiríssimo plano – quase submerge sob uma correnteza de, precisamente, nuvens (O viajante sobre o mar de névoa, c. 1818). Até o sublime se dissipa.

Há, mais próxima, a montanha marrom de Carlos Scliar que ocupa quase todo o quadro, tanto vertical quanto longitudinalmente. Sob uma massa de céu vermelho, a montanha se faz provocadora e política. Em cuidadosa letra de forma, decalcada com estêncil, proclama: “Eu sou uma montanha pintada. E você?” (Paisagem XXV, de 1973). 

Todo esse arrazoado, esse elogio da montanha, vem a propósito da mais recente série de desenhos de Guilherme Dable. A figura da montanha não aparece em todas as imagens, mas sua presença – pontual e indelével – acaba por reconfigurar todo o conjunto. Conta o artista que essa aparição se deu meio por acaso. Os desenhos seguiam ainda o caminho dos trabalhos anteriores: a partir de apontamentos de observação, Dable justapunha as porções mais abstratas de tudo quanto recolhe cotidianamente em seus arquivos de imagens: os encontros entre retas e curvas, entre linhas e planos, as arestas que brotam de qualquer canto, os próprios cantos e seus ângulos, os ângulos e as perspectivas. Tensionava, como de costume, diferentes materiais e distintas soluções: o corte abrupto, duro, da fita-crepe e a tinta leve, embebida em água, velada e escorrida; as transparências e as opacidades; o óleo e o grafite; o pastel seco e a cera de abelha; o branco do papel e o preto chapado. Em meio a isso, em um dos desenhos, no canto inferior esquerdo, abaixo de uma composição em rosa e preto, com planos sobrepostos e azuis se desmanchando, irrompeu um contorno de montanha. O autor abraçou essa figura. Com grafite, material clássico para a construção de desenho, riscou minuciosamente os diferentes volumes da montanha. Dable guardava ainda na memória a viva impressão causada pela cadeia montanhosa que acompanha os desertos de sal da Bolívia. Fotografias e anotações tomadas naquela viagem foram revisitadas e serviram de referência para os desenhos seguintes. 

Essas montanhas não são mero sinônimo de solidez e imobilidade. Até porque elas parecem se deslocar ao longo dos papéis. Combinam-se com a geometria e desdobram-se em diferentes volumes (a lição de Cézanne). Acolhem os sólidos e as arestas que pontificavam na série anterior. Modulam os cinzas do grafite. A representação de montanhas, nesse caso, subverte o próprio padrão de leitura que aquelas composições começavam a sugerir. Qual manifestação de sintoma, a /montanha/ vem deslocar as compreensões que o admirador daqueles desenhos acreditava ter encontrado.

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